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Entrevistas


Por Instituto Escolhas

03 junho 2019

9 min de leitura

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Entrevista do Mês: Alice Amorim

A mudança climática no banco dos réus

Casos de litigância climática tendem a crescer no Brasil

Dentro de um mundo globalizado em que a urgência para enfrentar a crise climática é grande, cresce o número de ações judiciais, em vários níveis e países, que tem como objetivo provocar a redução das emissões de gases de efeito estufa. Neste contexto, a chamada área da litigância climática, apesar de ser ainda incipiente no Brasil, começa a acumular casos jurídicos interessantes, seja na América Latina, Europa ou nos Estados Unidos.

Em entrevista ao Instituto Escolhas, a advogada Alice Amorim mostra como a litigância climática pode ser muito bem usada por vários atores contra a crise do clima.

Especialista no tema, Alice, coordenadora do Portfólio de Política Climática e Engajamento do Instituto Clima e Sociedade, do Rio de Janeiro, é uma das autoras do livro “Litigância Climática”, lançado em maio em um evento sobre o tema em São Paulo. A obra é organizada pelas advogadas Joana Setzer, Kamyla Cunha e Amália Fabbri. “É a primeira obra sobre o tema no Brasil. São vários artigos que dão a primeira pincelada sobre os aspectos políticos e práticos de lidar com a litigância”, diz Amorim.

Leia a seguir trechos da conversa, que fala também sobre os casos mais emblemáticos em curso no mundo, tanto na Europa quanto na América do Sul.

Instituto Escolhas – Existe uma definição formal para o termo litigância climática?

Alice Amorim – Litigância climática é qualquer processo judicial que tenha como finalidade provocar na prática uma redução da emissão de gases de efeito estufa. Essa consequência, pedida pelos autores do processo, pode ser tanto o objetivo central quanto secundário da causa. Você pode ter um processo judicial contra uma violação de direitos ou uma ação para a reparação de um dano qualquer, mas que tenha alguma correlação com a mudança do clima e com o objetivo maior de redução das emissões de gases de efeito estufa.

Portanto, o termo litigância climática tem a ver apenas com a questão do clima e não com a causa ambiental de uma forma mais ampla?

Exatamente. Vou dar um exemplo que é muito bom para ilustrar. É um caso real bastante conhecido por quem se dedica ao tema. Um fazendeiro peruano ajuizou uma ação contra uma empresa de eletricidade alemã, alegando que a cidade onde ele mora nos Andes, e que está bem abaixo de uma região em que o degelo é muito acentuado, vai precisar sofrer algum tipo de proteção, em algum momento, por causa do impacto da mudança do clima. Por conta disto, a empresa, por ter uma responsabilidade sobre as causas da mudança climática, na visão do agricultor, deveria pagar uma indenização aos moradores da cidade, para adaptar a cidade aos impactos do derretimento das geleiras. Olha que interessante. É um caso ajuizado na Alemanha, em que o autor da ação é peruano. A ação está fundamentada no código civil alemão que diz que quando existe qualquer perturbação em sua propriedade cabe a quem está causando aquela perturbação cessar com aquela atividade. Fazendo uma extrapolação, essa perturbação está sendo causada no Peru pela mudança do clima devido a queima do carvão para gerar energia pela empresa alemã. É um caso típico de litigância climática.

Que tem um aspecto internacional. Apesar de o impacto ser super local?

Para que o conceito de litigância climática fique claro, não é uma condição este aspecto internacional. Mas é uma característica de muitos dos casos que vêm sendo ajuizados. Até porque, para entender melhor o panorama, este fenômeno crescente da litigância climática no mundo afora vem de um processo de formalização dos compromissos nacionais dos países e também das empresas, em uma esfera internacional. Compromissos que estão sendo cada vez menos cumpridos. Desta forma, quais instrumentos de pressão você pode ter? Campanhas, mobilização da opinião pública, incidência de pressão política direta, mas também você tem o processo judicial. Neste contexto global é que surge a litigância climática como um fenômeno, que vai ganhando diferentes faces e contornos em cada país.

Na Europa e nos Estados Unidos estes processos estão mais adiantados do que no Brasil?

Muito. Nos Estados Unidos em particular. Um dos dados recentes que temos do próprio repositório da Universidade de Columbia, o maior em termos do número de registros, é que mais de 70% dos casos já mapeados de litigância climática no mundo estão nos Estados Unidos. Isto dá uma dimensão da disparidade, apesar de que eles têm mais informação catalogada. No Brasil, o que posso dizer, é que você tem poucos casos considerados como típicos de litigância climática. Um fato importante, no caso americano, é que a própria sociedade civil, o movimento climático em si, tem no DNA o uso da litigância como uma ferramenta muito mais consolidada do que no Brasil. Na Europa, o caso mais emblemático registrado até hoje é holandês. O cenário está bem quente naquela região. Nos Estados Unidos já são mais de mil casos registrados.

Mas tanto o caso holandês quanto o caso de fazendeiro peruano estão transitados e julgados?

Não tem nenhum caso encerrado ainda que tenha uma grande relevância. Os casos encerrados são normalmente aqueles pequenos atrelados a algum setor específico. Às vezes você tem um processo sobre uma planta técnica em uma cidade qualquer. O caso internacional mais emblemático, que já teve uma decisão em segunda instância, ocorreu na Colômbia. Uma organização ambiental ajuizou uma ação  em nome de vários jovens do país para que o estado desenvolvesse um plano eficaz para a implementação dos compromissos de combate ao desmatamento que o governo federal havia assumido internacionalmente. É uma questão de justiça entre as gerações. A Suprema Corte Colombiana decidiu que o governo tem um tempo para, de fato, desenvolver um plano e tomar medidas consistentes com aquilo que ele havia se comprometido. O caso hoje está em uma fase de resolver como pode se dar vida a sentença judicial. É um caso que já está maduro, com uma decisão que pode ser considerada vitoriosa do ponto de vista do mérito. No caso holandês, que eu mencionei, ele também ganhou uma dimensão global, por causa da importância geopolítica dele. Uma pequena organização holandesa alegou que o compromisso assumido pela Holanda para o corte de emissões de gases de efeito estufa era incompatível com a responsabilidade histórica do país na geração do problema. Portanto, o estado deveria revisar os compromissos e ter uma meta mais compatível com a responsabilidade dele. Um país pequeno como a Holanda ter esta discussão histórica é importante. Vamos supor que uma organização chinesa fizesse a mesma coisa. O compromisso chinês seria completamente diferente do que ele é de fato. Ou os Estados Unidos. Está ação na Holanda é de 2016, na sequência do Acordo de Paris. O que mostra como o campo da litigância é muito recente.

E no caso do Brasil, nenhum caso para ser citado?

Aqui temos um caso interessante, em que a causa climática, vamos dizer assim, perdeu. O Ministério Público em Guarulhos ajuizou uma ação determinado que houvesse uma reforma do zoneamento urbano da região e o pagamento de uma indenização para as famílias que vivem na área do aeroporto de Guarulhos. Para os autores do caso, as aterrissagens e decolagens causam muita poluição. O caso não terminou ainda, mas a decisão foi negativa. Não se conseguiu estabelecer uma causalidade direta entre as atividades das companhias aéreas e do aeroporto com a poluição. É um caso interessante, mas o resultado final foi ruim. E coloca muito em evidência o fato de que a poluição, apesar de obviamente ser tratada pelo direito ambiental, também ter a ver com planejamento urbano. É um tema bem interdisciplinar. É complexo mesmo.

A litigância climática também pode ser usada nos grandes temas, como no caso recente do Acordo de Paris, em que o Brasil pensou em renunciar, mas depois permaneceu no acordo?

Poderia entrar sim. O espaço das cortes internacionais, que é muito influenciado sobretudo nas discussões sobre direitos humanos, pode vir a ser acionados para fins de implementação das medidas de mudança climática e do Acordo de Paris. Neste caso específico, o Brasil não chegou a sair, mas vamos dizer que ele tivesse saído. Qual teria sido o procedimento usado? Tem um pouco de polêmica nisto, mas, segundo a Constituição, existem procedimentos para ratificar acordos internacionais e outros para sair. Dependendo de como tivesse ocorrido esta saída você poderia, por exemplo, ingressar com uma ação para questionar se o procedimento usado foi o certo ou não. Não tem um objetivo direto de redução das emissões, como eu mencionei, mais seria um processo para questionar o próprio arcabouço legal que é necessário para que o Brasil implemente suas metas.

Existe uma explicação única para a falta de casos de litigância climática no Brasil? Existe algum gargalo importante que precisa ser resolvido?

Tem uma questão cultural importante que ajuda a explicar um pouco a quantidade baixa de casos. Nos últimos tempos, se pensarmos como a agenda da mudança do clima avançou, ela foi muito baseada em um protagonismo do governo federal que agiu como um bastião na defesa de uma ambição climática. Sempre houve um diálogo. O tom da discussão sempre foi o da implementação das coisas. O cenário, agora, mudou radicalmente. Por isso, a possibilidade de em eventual aumento de casos de litigância no Brasil está relacionada com a dificuldade de um espaço de interação, ou um aumento do espaço de mediação, entre a sociedade e o governo. Outra coisa importante, dentro deste contexto, é que diferentemente da maioria dos outros países, o Brasil tem o Ministério Público e a Defensoria Pública. Duas instituições que têm por excelência ocuparem estes espaços de uma demanda jurisdicional por casos de violação de direitos e de implementação de políticas. Se eles não priorizarem este tema dificilmente a sociedade civil fará isso, porque ela tem muito menos condições institucionais e financeiras de embarcar em um processo judicial.

Portanto é algo mais cultural mesmo, do que estrutural?

Isso mesmo. Pelo contrário, na verdade, a gente tem um arcabouço legal muito prolífico para questionar a mudança do clima em vários aspectos. Tem a política nacional de mudança do clima, tem política estaduais, às vezes políticas municipais de mudança do clima, a gente tem desde Código Florestal até lei de licenciamento. Uma série de coisas e pontos de entrada possíveis para discutir esta questão. A grande diferença é como você lida com estas leis. De uma maneira geral no Brasil existe uma tendência a judicialização em várias questões relacionadas com alguns direitos sociais. Como, por exemplo, o direito do consumidor ou quando você fala de educação, saúde. Na área climática, como uma categoria a parte da área ambiental, isso ainda não existe. Seria ótimo se isso não precisasse existir. Mas, do jeito que as coisas não estão sendo implementadas, e estão sendo desmanteladas, é uma possibilidade que isso ocorra.

Em termos de atores que podem deflagrar processos de litigância climática, estamos falando apenas do Ministério Público e da Defensoria Pública?

Definitivamente, eles não são os únicos. Isso é uma outra coisa importante para a gente pensar. Olhando de novo para o contexto global, muitas ações de litigância são oferecidas por empresas e não são digamos, entre aspas, para o bem. Só para reduzir as emissões. Mas muitas vezes, são processos para reduzir a regulação que determina que você tem que reduzir as emissões. Isso é um fenômeno muito comum. Mas, além disso, você pode ter a mobilização da sociedade civil, dos indivíduos, enfim, várias possíveis partes interessadas que podem ajuizar não só ações civis públicas. Tem vários tipos de processos judiciais disponíveis no Brasil que podem ser usados. Hoje, a maior parte dos casos de litigância é contra o Estado, mas não dá para dizer que é uma tendência que vai se consolidar dessa maneira.

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