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Entrevistas


Por Instituto Escolhas

01 outubro 2019

8 min de leitura

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Entrevista do mês: Jeovah Meireles

Os saberes populares precisam fazer parte do planejamento das cidades

Alinhar os saberes populares e ancestrais ao conhecimento produzido na universidade está no centro do trabalho desenvolvido pelo professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia e dos programas de Pós-Graduação em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará (UFC). 

Um dos principais especialistas do país em indicadores geoambientais de flutuações do nível relativo do mar e mudanças climáticas, o professor desenvolve pesquisas que associam esse conhecimento as discussões atuais sobre o enfrentamento às mudanças climáticas, sobretudo nas zonas costeiras, criando e testando alternativas que de fato incidem no planejamento público e gestão da infraestrutura dessas regiões. Tudo isso com a inclusão e participação ativa das comunidades que são diretamente mais afetadas, como as populações tradicionais extrativistas, agricultores familiares e indígenas. 

Recentemente o professor esteve em São Paulo para participar de um workshop sobre o novo estudo do Instituto Escolhas, que analisa se a água deve ser tratada como insumo pelo setor elétrico. Nesta entrevista, realizada logo após o debate, ele comenta sobre os conflitos pelo uso da água gerados a partir da construção da Termelétrica de Pecém, no Ceará, e a experiência de desenvolverem o primeiro Plano Municipal de Enfrentamento a Mudanças Climáticas, na cidade de Icapuí, entre outros assuntos. 

Instituto Escolhas – Qual é a contribuição da Geografia na pauta das mudanças climáticas no Brasil, principalmente neste momento em que a ciência é colocada em dúvida por um campo político?

Jeovah Meireles – Venho estudando há bastante tempo, do ponto de vista da evolução da natureza, os sistemas ambientais que foram originados a partir de mudanças climáticas e variações do nível do mar. São sistemas que mostram que, de fato, esse fenômeno ocorre no nosso planeta. A costa nordestina e o litoral do Ceará estão repletos de indicadores de flutuação do nível do mar e de mudanças climáticas. Como entrei no departamento de Geografia, minha tese é como esses dados podem fazer uma ponte para o planejamento e gestão do litoral, um dos sistemas ambientais mais pressionadas pelo fato da maior parte da população planetária morar na zona costeira. Essa ponte começou a ser construída, mas dentro de aspectos muito especiais de como elaborar essa relação do conhecimento com a sociedade. E nesse aspecto específico, que vem conduzindo toda a nossa pesquisa na universidade, trabalhamos com determinados grupos que historicamente foram invisibilizados e completamente anulados nesse processo de pensar essa dimensão do planejamento e da gestão da zona costeira. É na inclusão desses grupos sociais que nós nos direcionamos efetivamente para fazer esse vínculo e abordar o conhecimento tradicional e étnico no mesmo nível do conhecimento acadêmico e científico, nesta dimensão onde esses dois conhecimentos são fundamentais para enfrentar as questões previstas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC. 

Escolhas –  Quais são esses impactos previstos nas cidades costeiras brasileiras, sobretudo nessa região que é objeto do seu trabalho? 

Meireles – Estamos analisando essa questão através de dois grandes eixos: ao longo da planície costeira e na região metropolitana de Fortaleza. Do ponto de vista da planície costeira, temos dados concretos da salinização do lençol freático e erosão continuada e cumulativa em quase 573 quilômetros de litoral. Nós pegamos um trecho dos menos impactados por construções de espigões, estradas e impermeabilização do solo, que é o município de Icapuí, no extremo leste do estado, entre o Ceará e o Rio Grande do Norte, e evidenciamos a evolução da linha de costa nos últimos 40 anos. Só existe um certo trecho com aporte de areia, e não erosão, onde as dunas estão prestando esse serviço ambiental e ecológico de suprimento de areia para minimizar os processos erosivos. A duna é uma esponja que retém água e faz com que a salinidade, com a subida do nível do mar, seja de certa forma barrada. O litoral cearense é praticamente um grande campo de dunas, então nós estamos, em parte, tranquilos, mas essas questões todas estão também relacionadas com especulação imobiliária, ocupação inadequada, mineração extensiva e baixíssimo saneamento básico dos pequenos municípios. 

Na região metropolitana de Fortaleza, estamos analisando quais são os serviços ecossistêmicos vinculados à sistemas ambientais que ainda resistem a esta pressão de crescimento – os campos de dunas e os manguezais – e qual sua importância para o clima, biodiversidade, lazer e pesquisa científica. Com isso, estamos fazendo planos de manejo, de gestão integrada e do uso público da orla marítima de Fortaleza, todos dentro desse escopo para que se possa, de uma forma integrada, pensar como agir diante das mudanças climáticas. 

Escolhas – E como acontece essa integração do conhecimento produzido por vocês com o poder público, sobretudo do ponto de vista dessas políticas para infraestrutura urbana e ordenamento costeiro? 

Meireles – Agora mesmo temos um grupo de suecos no nosso departamento estudando clima urbano para tratar essas questões, a partir de políticas e processos que acabam fundamentando políticas públicas. Nesse caso específico (de Icapuí), vamos terminar agora em dezembro o primeiro Plano Municipal de Enfrentamento a Mudanças Climáticas. Não conhecemos nenhum plano como esse numa planície costeira, com envolvimento de técnicos e a população do próprio município. Já falamos com mais de 400 pessoas e estamos construindo uma ferramenta de poder comunitário e de enfrentamento às consequências já observadas, como a salinização do lençol freático e o desmatamento dos manguezais. 

Escolhas – Esse é um exemplo isolado ou já há outras iniciativas no Brasil? 

Meireles – Do ponto de vista de colocar como um eixo fundamental do planejamento as consequências relacionadas ao aquecimento, acredito que boa parte dos pesquisadores brasileiros já têm essa dimensão muito concreta. Mas no nosso caso estamos elaborando um plano de intervenção de fato, que é para nós interessante porque, acima de tudo, deve ser um plano de formação de uma juventude que está num município de menos de 20 mil habitantes, que já tem problemas sérios com isso. Então fazemos sempre esse exercício de trazer essa discussão para a base e empoderar essas informações nas comunidades indígenas, camponesas e  marisqueiras. É uma universidade, um grupo de pesquisadores, que produz ciência iluminando a importância que as questões e saberes populares façam parte minimamente das avaliações de modelos econômicos, que são sempre muito financeiros. 

Escolhas – A Termelétrica de Pecém é sempre colocada como um exemplo dos conflitos gerados nesse sentido entre grandes empreendimentos e populações locais…

Meireles – Pecém é um desastre ambiental, climático, ecológico e étnico. É um colapso. Nós estamos estamos falando de termelétricas e siderúrgicas movidas a carvão de péssima qualidade. Não se sabe nem o que vai se fazer com os resíduos dessa queima. Tem também o uso da água, a produção de dióxido de carbono maior do que a cidade de Fortaleza. É um exemplo bastante ruim de se pensar  desenvolvimento. Na realidade é um exemplo concreto do desenvolvimentismo, do tecnicismo, do licenciamento ambiental atropelado, rápido, com poucos dados de monitoramento, com a invisibilização das comunidades tradicionais, com a não inserção na cidade de Fortaleza nesse processo e a ocupação de um território indígena. Você imagina consumir aquele tanto de água no semiárido, ainda mais roubando a água dos ecossistemas que proporcionam minimamente a produção de alimento e o modo de vida dessas populações, na região que é o cinturão verde da cidade. A termelétrica está sobre o lençol freático. Se colocou uma termelétrica em cima de um aquífero e se cobriu várias lagoas e rios. Não se fez minimamente alternativas locacionais, tecnológicas ou impactos cumulativos. São questões que realmente tornam ali um exemplo de colapso ambiental e social, ainda mais quando se tem a previsão de longo prazo do colapso cumulativo que essas indústrias geram. 

Escolhas – Há uma grande discussão sobre a necessidade de se equacionar a produção de energia e seus impactos sociais e ambientais, mas como encaminhar esse debate?

Meireles – Cada dia está mais claro esse caminho. E está muito claro a partir das manifestações da sociedade, principalmente de grupos indígenas, de produtores de alimentos, de agroecológicos e agricultura familiar. E já tem cenários de certa forma alentadores, onde existem a possibilidade de alimentar a população do nosso planeja com esse tipo de soberania, investimento e reestruturação de matrizes. Esse caminho já está plantado por grupos, por instituições, organizações, movimentos ambientalistas, por comunidades de base e movimentos no campo, isso já está muito bem construído. 

Nós estamos agora trabalhando muito com o movimento que debate a mineração lá no Ceará. Nós já fizemos mais de 80 cartografias sociais no nosso laboratório de geoprocessamento, que se contrapõe a cartografia tradicional, que é a cartografia do poder. Estamos construindo essas cartografias diante de proposições concretas, muito bem analisadas e ancestralmente comprovadas, mas que não recebem recursos e grandes investimentos. Hoje, os modelos são construídos a partir de relações de custos e benefícios muito vezes impostos pelo investidor, e entram no nível da especulação. Por que não fazer um teste de inversão? Vamos calcular única e exclusivamente o custo da produção agroecológica, da produção camponesa, da mineração adequada, da produção de policultivos, do custo da água para esse tipo de atividade. E com isso definir de uma forma precisa territórios livres de termelétricas movidas a carvão vegetal no semiárido. Na realidade é isso o que nós gostaríamos de discutir. Acho que o Instituto Escolhas tem isso nas mãos, com a participação de grupos que têm uma estrutura muito bem ordenada e processos muito bem definidos, que já produzem alimentos, produzem manejos de águas extremamente eficazes, que produzem riqueza, deixam jovens no campo e evitam vários problemas. 

Escolhas – Avaliar os custos envolvidos no uso da água como insumo para produção de energia, como se propõe esse estudo que está em curso no Escolhas, é uma contribuição importante para o início desse debate? 

Meireles – O exemplo dessa reunião é incrível. Como o Escolhas consegue juntar esse grupo de pessoas com percepções concretas, com percepções bem construídas, técnicos de altíssima qualidade, e que, pelas questões que foram levantadas, tenho certeza que estão dispostos a esse outro debate. 

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