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Entrevistas


Por Instituto Escolhas

09 outubro 2020

12 min de leitura

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ENTREVISTA DO MÊS – Ana Luci Grizzi: “Financiamento é instrumento de controle ambiental”

É preciso assegurar que o sistema de financiamento no país avalie os ativos para os quais os recursos financeiros são direcionados, de forma a garantir que os projetos estejam de acordo com as normas ambientais, destaca a advogada, sócia do Veirano Advogados.

Por Soraia Duarte

Com 20 anos de experiência em Direito Ambiental, área na qual possui mestrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a advogada Ana Luci Grizzi nunca imaginou ver presidentes de grandes bancos assumindo compromissos públicos relacionados à adoção de critérios socioambientais na concessão de financiamentos, como tem ocorrido nos últimos meses. “Ver a efetividade das normas ambientais sendo assumida pelo setor privado, pelos bancos, era meu sonho de consumo”, destaca.  Questões relacionadas a meio ambiente, observa, tem ganho espaço crescente nas pautas de discussão. Mas a concretização desse movimento demanda avanços efetivos nos critérios ambientais e climáticos adotados pelas instituições financeiras para avaliar os investimentos.

Nesta entrevista ao Instituto Escolhas, Ana Luci faz uma análise das discussões internacionais sobre esse tema e de como o Brasil tem acompanhado tal tendência. Também comenta a proposta de regulação dos riscos ambientais e climáticos no âmbito do sistema financeiro local, na qual ela vem trabalhando em conjunto com o Instituto Escolhas.

No podcast Escolhas no ar, episódio#13, a advogada fala um pouco mais sobre o papel do sistema financeiro como indutor de boas práticas ambientais. Ouça nas plataformas Spotify e Soundcloud.

 

Instituto Escolhas – Como está a discussão por parte dos principais bancos do mundo, em especial americanos e europeus, sobre a adoção de critérios ambientais e climáticos para avaliar os investimentos?

Ana Luci Grizzi – O que existe atualmente são discussões em relação à adoção de padrões de divulgação de informação, exclusivamente sobre adotar ou não os critérios de divulgação da TCFD (sigla em inglês de Força-Tarefa para Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima), que é voltada exclusivamente para dados de emissão de gases de efeito estufa. Que seja do meu conhecimento, não há uma discussão internacional em relação a um padrão amplo, abrangendo outras questões ambientais, nem sobre a responsabilidade socioambiental dos bancos. Diferente disso, temos o relatório sobre riscos climáticos financeiros, elaborado em 2019 e divulgado no último mês de setembro pelo Network for Greening the Financial System, rede global de bancos centrais. Esse documento traz a avaliação de riscos ambientais dentro do sistema financeiro como um todo, na visão de estabilização de macroeconomia e de estabilidade financeira, abrangendo políticas monetárias e macro cenários, entre outros temas. Mas é só essa publicação.

Escolhas – Como o Brasil e o nosso sistema financeiro está se envolvendo nessas discussões? A prática de adotar padrões para divulgação é o que também se observa por aqui?

Ana Luci – Essa discussão aqui no Brasil é muito recente. Ela começa, praticamente, quando o Banco Central inclui a sustentabilidade na sua agenda, o que ocorreu no início do mês de setembro. Foi a primeira vez que tivemos uma comunicação oficial para falar de adoção de padrões para divulgação. Alguns grandes bancos já discutiam isso e, inclusive, já vinham adotando os padrões TCFD. Mas estamos falando de uma divulgação voluntária, que permite separar o que quero ou não divulgar. Por isso, não conseguimos mensurar a abrangência e validação dessas informações.

Escolhas – A discussão parece defasada com a que vem ocorrendo em outros países…

Ana Luci – Na minha avaliação, há um motivo: não temos um sistema de comando e controle eficiente. Diferente, por exemplo, dos Estados Unidos. Lá, no fim da década de 90, surgiram muitas discussões sobre a responsabilidades dos bancos em relação a áreas contaminadas que eram compradas e revendidas, ou que entravam em garantia. No começo, os bancos estavam sendo responsabilizados por essas áreas, mas foi havendo uma evolução. Se o banco é responsabilizado, a classificação de riscos aumenta e influencia o equilíbrio do sistema financeiro, e não é isso que se quer. Eles conseguiram ir dosando, colocando condições e retirando a responsabilidade dos bancos. Foi uma evolução. Possível porque lá o sistema de comando e controle funciona. Diferente daqui. Temos as normas ambientais, mas também órgãos ambientais deficientes em infraestrutura e em pessoal, e governança pública ambiental pouco efetiva. Então, quando se discute se o banco deveria ser responsabilizado pelos passivos gerados pelas operações que ele financiou e nas quais detém ativo, temos um problema maior, porque não temos quem resolva esses passivos. Nosso sistema de comando e controle é falho. Precisamos ter ações que não são usuais em países em que esse sistema funciona. É pior para a atividade financeira, porque os bancos  terão que adotar outras ações, de diligência ambiental [investigação e avaliação de restrições ambientais existentes, identificando a viabilidade de um determinado empreendimento no local pretendido]., por exemplo, diferentes das que são tomadas lá fora.

Escolhas – Nesse debate internacional, está em pauta o questionamento de que eventuais regras que venham a ser adotadas precisem ser de caráter obrigatório, determinadas pelos reguladores, ou se seriam de adesão voluntária? 

Ana Luci – Essa discussão, sim, existe globalmente, e ganhou impulso com as discussões sobre critérios ESG (sigla em inglês para meio ambiente, responsabilidade social e governança corporativa). O debate abrange a necessidade de tornar obrigatórios os padrões de divulgação da TCFD e se a adoção desses critérios deve ser ampliada, abrangendo todos os assuntos ambientais que cabem dentro do “E” (sigla de meio ambiente, em inglês), indo além de mudanças climáticas.

Escolhas – Já temos algum avanço concreto?

Ana Luci – No começo deste ano, a CVM alemã [entidade análoga à Comissão de Valores Mobiliários do Brasil] divulgou um relatório mais amplo, abrangendo todos os assuntos ESG, a forma de avaliação de critérios ambientais e a divulgação de informações pelas companhias abertas. Se a divulgação é voluntária e não regulada, publica-se o que quiser, da forma que quiser. A discussão existe porque falta base comparativa e transparência. Os dados precisam ser comparáveis com os de outras empresas, contribuindo para a tomada de decisão de investimentos. É por isso que a União Europeia, por exemplo, discute taxonomia [divulgação obrigatória de informações sobre critérios de sustentabilidade ambiental].

Escolhas – E no Brasil? Existe algum movimento nesse sentido?

Ana Luci – O Brasil está fora disso. A CVM tem dito que o mercado se regula. Eu entendo a posição deles, até por não termos ainda nenhuma definição internacional. Assim, tudo o que temos em relação à divulgação de informação ambiental pelas companhias abertas brasileiras são informações não validadas. É permitido informar o que querem, da forma que quiserem. Não temos quem faça a validação. As informações socioambientais nem sempre são transparentes ou mostram aos investidores os riscos e benefícios do negócio. Deveríamos estar num momento de abertura de dados, que é o que o investidor precisa para tomar a decisão de investimento.

Escolhas – Temos uma resolução do Banco Central que trata da responsabilidade socioambiental das instituições financeiras. Qual sua avaliação sobre a efetividade dessa norma?

Ana Luci – A Resolução 4.327 é o que chamamos de norma programática. Propõe a construção de uma política e da governança corporativa dentro dos bancos e das instituições autorizadas a funcionar pelo Bacen [Banco Central] para começarem a fazer a avaliação de risco socioambiental. Para o que foi prevista, ela cumpre a finalidade. O risco socioambiental passou a ser obrigatoriamente incluído na governança do banco e como assunto a ser avaliado. Mas a norma só fala que é preciso avaliar. Ela ainda é muito tímida em relação às ações que o banco deve adotar para verificar a conformidade ambiental dos projetos nos quais ele se envolve. Por isso, é uma norma que não gerou muito resultado prático. Os grandes bancos já estavam acostumados a fazer alguma avaliação de risco, a depender do projeto e dos valores. Mas essa avaliação não se aplica a todas as operações do banco, porque não está prevista na resolução.

Escolhas – Você acredita que essa resolução precisa ser atualizada, em razão do debate tão intenso sobre os bancos serem mais ativos na escolha dos investimentos?

Ana Luci – Pelo que se tem de informação do BC, vai haver uma revisão. Não sabemos ainda a abrangência, mas, em minha avaliação,  é preciso assegurar que o sistema de financiamento no país – e os bancos são grandes players nisso – seja responsável o suficiente para avaliar onde o dinheiro será alocado, de forma a garantir que os projetos estão de acordo com as normas ambientais. Os bancos precisam tomar algumas ações que estejam dentro do dever de diligência – usando um termo da governança corporativa -, antes de efetivamente fazer os aportes. Tem de fazer controle, sim, porque é por meio do financiamento que a atividade econômica é estimulada. Financiamento é instrumento de controle ambiental.

 

Escolhas – Em conjunto com o Instituto Escolhas, você está elaborando uma proposta de regulação dos riscos ambientais e climáticos no âmbito do nosso sistema financeiro. No que consiste essa iniciativa?

Ana Luci – Essa proposta de regulação é um segundo passo dessa Resolução do BC, a 4.327, que fez a nossa governança ambiental e incluiu o gerenciamento de risco socioambiental dentro das instituições financeiras autorizadas a funcionar pela autarquia. Agora, é preciso dar efetividade às ações de gerenciamento de risco. Num primeiro momento, estamos redefinindo o que é risco socioambiental de fato e propondo uma matriz de riscos, para que os bancos consigam fazer a valoração dos ativos que não é feita hoje. É um avanço em relação ao que temos, em que o risco ambiental possui definições voluntárias e variadas. Assim, ampliamos o conceito, abrangendo tudo o que é regulado pelo direito ambiental no Brasil. Se é regulado e as normas são infringidas, trata-se de um risco ambiental. Com ou sem dano efetivo, existe a infração concretizada.

Escolhas – Você pode nos contar o que está sendo considerado nessa proposta e as principais inovações?

Ana Luci – Como esse padrão está concentrado em emissões de gases de efeito estufa, faremos a sugestão de que sejam adotados outros padrões para que os demais assuntos relacionados a meio ambiente sejam abrangidos. O mais importante, para nós, não é a atividade do banco em si, mas os projetos nos quais ele se envolve, o financiamento que ele vai propiciar, de forma que os tomadores – de financiamento ou investimento – estejam em conformidade com as normas ambientais.

Escolhas – Quais são os próximos passos desse projeto?

Ana Luci – Como o anúncio do Bacen veio no meio do projeto – e num momento super oportuno – nossos próximos passos serão conversas com a autarquia. Na divulgação, o BC informou que irá colocar uma norma em consulta pública. Vamos apresentar nossa proposta de regulação, sugerindo que ela seja trabalhada como base pelo governo. Também vamos divulgar as informações do projeto, por meio de um primeiro seminário, em formato webinar, para discuti-las com pessoas da área e promover conversas específicas sobre risco ambiental com as instituições financeiras.

Escolhas – Também em conjunto com o Instituto Escolhas, você está elaborando uma proposta para que os investimentos em ouro possam ter a procedência atestada, de forma a assegurar que não tenham origem ilegal, o que acaba acontecendo quando a exploração é feita em um garimpo ilegal na Amazônia. Você pode nos dizer o que será proposto e a quem essa proposta será destinada?

Ana Luci – É o mesmo contexto de avaliação de riscos, mas na origem. Quando discutimos origem de produtos, é mais fácil associá-la com bens de consumo. Mas tenho de fazer essas avaliações para todos os itens que eu compro, inclusive para os produtos financeiros, ativos financeiros ou valores mobiliários. Hoje não há mecanismos que confirmem a origem do ouro, que permitam verificar o lastro ambiental de conformidade legal. Podemos estar falando de algo relacionado a garimpo ilegal, que prejudica toda a atividade econômica nacional e que prejudica nossa imagem no exterior, dando vazão a outros questionamentos que podem impactar a balança comercial. Nesse contexto, que é exatamente a avaliação de risco ambiental do negócio, o ouro chamou a atenção do Instituto Escolhas. A ideia é apresentarmos dois tipos de norma. Como o mineral é classificado, no mercado, como ativo financeiro e valor mobiliário, vamos trabalhar com o Banco Central e com a CVM. A finalidade da discussão é que o ouro entre no sistema, para ser comercializado, com um processo de conformidade legal que assegure que ele é originado de áreas com concessão/permissão de lavra e licenciamento ambiental.

Escolhas – Você mencionou o impacto da avaliação de riscos ambientais na balança comercial. Um caminho que o Brasil tem buscado, para aumentar a exposição do país ao comércio internacional, é tornar-se membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nossa agenda de normas ambientais está harmonizada com os instrumentos adotados pela OCDE?

Ana Luci – Ser membro da OCDE é uma oportunidade fantástica para o nosso país. A OCDE reúne, se não me engano, mais de 80% do PIB mundial. Quando nos juntamos a ela como membro e não mais como participante, passamos a fazer parte das decisões de forma mais efetiva e aderimos a todos os instrumentos legais da OCDE, diretivas que podem nos ajudar em tudo que ainda precisamos fazer como um país em desenvolvimento, e que impulsionam a abertura da economia. O que falta para que a OCDE aceite nosso pleito para sermos membros não é a harmonização de normas. Nas questões ambientais, por exemplo, nosso sistema está 95% harmonizado. Tem uma alteração única, um ajuste mínimo que precisa ser feito num assunto específico de resíduo. O que precisamos é assegurar que nosso ordenamento jurídico seja eficaz. Como falei anteriormente, se tenho um sistema de comando e controle ineficaz, eu não estou implementando as normas de fato, e a OCDE cobra que esse sistema seja efetivo.

Escolhas – Você atua com direito ambiental há duas décadas. Como avalia o desenvolvimento do tema ao longo desses anos?

Ana Luci – O salto, na verdade, não foi em 20 anos, mas a partir de 2019. Antes disso, o avanço foi pouco ou quase nenhum. O ordenamento jurídico ambiental brasileiro é muito bom, muito detalhado se comparado aos demais países, mas também é muito recente. Efetivamente, ele começou a sair do papel com a publicação da lei de crimes ambientais, em 1998. Somente a partir de 2000, passado o prazo de cumprir os efeitos da norma, é que começou um movimento diferente, que coincidiu com o desenvolvimento tecnológico e com as agências ambientais entendendo esse novo funcionamento. Foi um processo de educação e crescimento que não significou eficácia das normas ambientais. Mas a avaliação de risco ambiental foi ficando cada vez mais refinada, e de 2019 para cá demos um salto de entendimento sobre o que é a variável ambiental. Temos visto discussões materiais em relação a esse tema. Nos últimos meses, esse movimento se intensificou com o desafio de aprendizado desencadeado pela pandemia, contexto que nos abriu a possibilidade de colocar o meio ambiente nas pautas de discussão. Agora, vemos presidentes de grandes bancos indo à mídia e assumindo compromissos em relação à concessão de financiamentos para quem não estiver operando legalmente. Ver a efetividade das normas ambientais sendo assumida pelo setor privado, pelos bancos, era meu sonho de consumo, como advogada e como ser humano.

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